Preconceito afasta transexuais do direito ao estudo
- bixcoitodiario
- 8 de mai. de 2019
- 6 min de leitura
Evasão escolar entre jovens trans foi um dos temas debatidos no evento que celebrou o dia mundial da educação
Por: Dayane dos Anjos

Evento #Nem1PraTrás trouxe debates acerca da evasão escolar
Foto: Dayane dos Anjos
Você sabia que mais de 70% dos estudantes que não se declaram heterossexuais no país já foram agredidos verbalmente nas escolas? Esse é um dado de uma pesquisa feita, em 2016, pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais (ABLGBT) e foi um dos temas debatidos no evento de comemoração ao dia mundial da educação, da Fundação Roberto Marinho, chamado #Nem1PraTrás, que ocorreu no dia 28 de abril, no Museu da República. Entre as atividades, diversos debates giraram em torno da importância do jovem na educação e o respeito à diversidade.
Em uma das mesas de discussão, estava a trans Ana Vitória, de 22 anos. Ela falou sobre a evasão escolar e os número são alarmantes. Segundo a Rede Trans, mais de 80% dos jovens trans abandonaram a escola por causa de bullyng.
“A gente precisa tornar a LGBTfobia um crime. Compreender que esse processo de exclusão vem de uma motivação de ódio. A gente tá sendo morto por causa do ódio e é papel do Estado proteger esses corpos através da educação”, diz Ana Vitória.
Ana Paula Brandão, gerente de mobilização do Canal Futura e que estava na organização do evento, destaca a importância da educação no combate dos jovens à exclusão tanto escolar quanto do meio social.
“Dado o fato que a gente tem um problema enorme com a educação no Brasil, um problema que se arrasta nos últimos anos, mas que tem ficado pior atualmente, a gente achou que seria um bom momento para todo mundo fazer uma mobilização em torno da educação”, comenta Ana Paula. “A gente precisa ficar atento e ver o que a sociedade civil organizada pode pressionar os governos, municípios, estados e o governo federal para não deixar nenhum para trás.”

Diversos profissionais estavam presentes para discutir o que precisa ser feito para se ter uma educação melhor nas escolas | Foto: Dayane dos Anjos
Infelizmente, os casos de pessoas trans que se distanciam da vida escolar não são isolados e ainda pior: a expectativa de vida de um(a) transexual é de 35 anos, quase a metade da média nacional, que é de 76 anos, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Barbara Aires, ativista, atriz e ex-assessora do atual deputado estadual, David Miranda, sofreu bastante preconceito na idade escolar e largou os estudos algumas vezes.
“No primeiro dia de aula eu já era o viadinho da sala e no segundo dia de aula eu já era o viadinho da escola”, lembra. “Eu era criança e não tinha noção do que acontecia.”
Barbara conta que mesmo saindo de casa aos cinco anos, por falta de apoio do pai, o preconceito continuou. Aos doze anos foi parar em um abrigo do Governo, em São Paulo, onde pôde retomar os estudos e os constrangimentos também foram retomados. “Tacavam salsichas e biscoitos em mim”, diz. “Às vezes juntavam rodinhas de meninos para me bater e as meninas vinham para me defender.”
A militante, que já foi consultora de gênero e sexualidade de alguns programas de TV, incluindo ‘Amor e Sexo’, ‘Liberdade de Gênero’ e ‘Quem Sou Eu’, lembra de um episódio na escola que quase a fez se automutilar.
“Um dia a professora desenhou no quadro um desenho de uma menina e de um menino. Explicou o que era cada um e que ficavam juntos para fazerem outras crianças. E aquilo deu um nó na minha cabeça porque eu não tinha uma diferenciação do que era menino e menina”, conta. “Eu costumava acompanhar a minha mãe durante o banho, algo que, inclusive, meu pai se incomodava. E eu lembro de um dia eu perguntar à minha mãe quando o meu “negócio” ia ficar igual ao dela e ela, sem entender muito, disse que ficaria igual quando eu crescesse.” Barbara ficou confusa depois desse diálogo com mãe e da explicação da professora. “Eu cheguei em casa, nesse dia, me tranquei no banheiro e queria cortar o meu “piu piu”. Sorte que a minha mãe bateu na porta, porque eu já estava com a tesoura na mão.”

Barbara sofreu diversos preconceitos no ambiente escolar | Foto: Reprodução
No ensino médio também não foi muito diferente. Foi a época mais difícil porque Barbara estava em sua fase de transição e estudava em uma escola noturna, em Carapicuíba, em São Paulo.
“Eu comecei a sofrer perseguição um pouco mais séria, como xingamentos, agressões e ameaças de morte”, recorda. “Até que um dia eu tive a minha cabeça enfiada no vaso sanitário.”
Ela não podia usar o banheiro feminino e no masculino era agredida e sofria assédio moral e sexual.
“Foi aí que eu abandonei de vez a escola", conta.
Através do Enem, Barbara conseguiu o certificado de conclusão do ensino médio, por meio do Prepara Nem (curso preparatório para vestibulares que reúne transexuais) e conseguiu chegar no meio acadêmico e cursou por um tempo Jornalismo em uma faculdade particular, mas teve que trancar por questões financeiras. Porém, não é porque chegou à universidade que ficou livre de preconceitos.
“Lembro de um professor em sala de aula que disse que um aluno tinha levado um atestado médico para ele, ginecológico, e disse: ‘hoje em dia esses meninos podem falar que é mulher e tenho que aceitar’. Eu entendi que ele estava se referindo a um menino trans” e, após esse episódio, Barbara teve crise de ansiedade e ficou um mês sem sair de casa, o que a fez perder a bolsa da faculdade. Entretanto, o que a fez perder a bolsa da faculdade foi o preconceito ainda enraizado na nossa sociedade.
Barbara alerta da importância de debater assuntos relacionados a identidade de gêneros nas escolas para que se tenha uma educação mais plural e menos exclusora.
“Discutir sexualidade e identidade de gêneros nas escolas são importantes.”
E ainda diz: “eu defendo que as escolas deveriam ter psicólogos e assistentes sociais de prontidão para lidarem com questões de bullyng. Nossos educadores não estão preparados para lidarem com isso, até mesmo porque muitos trazem dogmas e crenças que podem corroborar com alguns preconceitos.”
A estudante de Relações Públicas, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), de 20 anos e trans, conta que não sofreu tantos preconceitos, mas porque teve apoio de amigos e professores durante o período escolar, porém, tem consciência de que essa não é uma realidade para todas as pessoas trans.
“Por muita sorte, acredito, eu não tive tantas questões na minha escola”, conta, enquanto se maquiava no hall do décimo andar da Uerj durante a nossa entrevista.
“Eu sempre fui muito decidida e certa das minhas questões, então, eu sempre tive uma postura muito séria quanto a isso”, diz. “Por eu ser bem resolvida, era difícil das pessoas mexerem com algo que para mim já era esclarecido.”
No entanto, Brunna se surpreendeu no meio acadêmico, em que se deparou com alguns preconceitos, especialmente em relação ao seu nome social.
“Eu tinha que pedir para os professores para não passar a lista de presença porque se passasse todo mundo ia ver o nome civil ao lado do nome social.”
Brunna lembra de um episódio no qual também se sentiu constrangida: “teve um dia que uma professora refletiu a lista de presença no telão da sala de aula e a turma toda viu o meu nome antigo que era algo que não me pertencia mais.”
A estudante alega que falta informação no meio da educação. “Tem muitos professores que não sabem lidar com isso.”
A futura Relações Públicas acredita que a informação é o caminho para que o preconceito acabe. “A ignorância é muito pautada por falta de informação”, diz.
“Ter palestras e questões que incentivem são muito importantes.” Brunna lembra de uma palestra que viu na Uerj, antes mesmo de ingressar na universidade, sobre uma trans na qual a inspirou e estimulou a continuar em sua transição.
Brunna alerta também a conscientizar os próprios professores sobre como lidar com pessoas trans. “Eles [professores] têm que saber como lidar com isso e tratar o aluno como qualquer outro e fazê-lo se sentir confortável” e completa: “os professores acabam indo atrás da informação e essas informações não chegam a eles.”
Para a trans, ativista, ex-filiada do PSOL e idealizadora do Prepara Nem, Indianara Siqueira, as escolas foram lugares bem violentos. Nos primeiros anos de estudo, ela estudava no mesmo colégio que a mãe trabalhava e tinha a sua proteção.
“Ela é quem me acompanhava ao banheiro. Geralmente eu ia no banheiro dos funcionários. Na hora do recreio, eu ficava com ela na cozinha e no final da aula eu esperava ela para irmos embora juntas”, conta.
A partir do quinto ano, Indianara muda de colégio e as coisas pioraram.
“Sofri agressões verbais e eu nunca chegava na hora para evitar de ficar na fila na hora de cantar o hino nacional”, lembra. “Minhas notas caíram muito.”
Ao contrário de Barbara e Brunna, Indianara desistiu da escola e fez até o primeiro ano do ensino técnico.
“Eu desisti porque a escola era um espaço muito agressivo e opressivo. Eu imaginava como que essas pessoas seriam adultas, com mais forças ainda, em uma universidade. É uma expulsão compulsória.”

“Sofri agressões verbais e eu nunca chegava na hora para evitar de ficar na fila na hora de cantar o hino nacional”, conta Idianara durante seu período escolar
Foto: Reprodução
Indianara reforça a importância de debates sobre preconceitos e violência serem discutidos dentro das escolas.
“O debate precisa ser feito na educação. E isso tem que estar dentro das disciplinas escolares, como se fosse qualquer outra matéria”, fala.
“A gente não tem que ter escolas só para formarem indivíduos para o mercado de trabalho. É por isso que querem tirar Ciências Sociais no ensino, porque são através dessas matérias que a gente consegue debater um pouco essas questões”, finaliza.
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