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EXTRA! EXTRA! Prefeitura retira "garoto" de 86 anos das ruas do Rio e leva para abrigo

  • bixcoitodiario
  • 12 de jun. de 2019
  • 8 min de leitura

Saiba um pouco sobre a história desse "garoto", para onde foi levado e qual o seu destino


Por: Alcina Quintela


Ele completou 86 anos no início de junho, mas tem uma saúde de bronze. Não tem certidão de nascimento, mas sabe-se que sua mãe era A Noite, seu pai, o caricaturista Fritz e que teve figuras importantes da época como padrinhos. Mesmo assim, sempre viveu modestamente pelas ruas do centro da cidade, sendo cada vez menos reconhecido pelo público. Em 2016, após quase ser atropelado pelas obras do Veiculo Leve sobre Trilhos (VLT), foi removido pela Prefeitura para um abrigo onde permanece sem poder receber visitas. Conheça a história do monumento ao Pequeno Jornaleiro que diz muito sobre a história da cidade e da imprensa carioca e compreenda a importância do seu retorno ao espaço público.


O garoto - Se fosse em 2019, talvez eles andassem de patinete elétrico pelas ruas do centro da cidade, mas na longínqua década de 1930, os meninos maltrapilhos, que vendiam jornais apregoando suas manchetes, corriam pelas ruas e circulavam dependurados nos bondes da então capital do país.


Tal qual hoje, se usassem os atuais patinetes, eles também naquela época eram vítimas frequentes de acidentes, sendo atropelados por trens, bondes ou pela grande novidade trazida pelo progresso: os automóveis.


O Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XX se moderniza graças às reformas urbanas que promovem a maior utilização do seu espaço público. Também a produção, circulação e consumo dos jornais impressos se intensificam com as transformações urbanas. Segundo a pesquisadora Marialva Barbosa, em meados da década de 1930, circulavam 23 jornais entre matutinos e vespertinos na cidade. Estes últimos, como A Noite, estavam em plena ascensão e formavam o que podíamos chamar, na época, de a "grande imprensa": grupo de jornais com maior circulação e de maior influência sobre a opinião pública.


Com preços que variavam entre 40 e 50 centavos de réis e contando normalmente com 24 paginas, podendo chegar aos domingos a até 60, estes jornais conseguiam ter, ainda segundo Marialva, tiragens de mais de 40 mil exemplares que precisavam ser rapidamente distribuídos e vendidos pelas ruas da cidade.


Para isso, se por um lado os jornais tinham ainda poucos pontos fixos de venda e que precisavam ser rapidamente reabastecidos, por outro, contavam com a extraordinária "ajuda" dos garotos pobres: os pequenos vendedores de jornais que circulavam agilmente pelas ruas apregoando cada nova edição. Os garotos eram muito estimados pela população carioca em função de sua rapidez, esperteza e capacidade de comunicação imediata com o público nas ruas.

Garotos vendedores de jornais. (Foto: Acervo Luciano Magno)

A Noite e a Casa do Garoto - Como a margem de lucro que obtinham na venda dos jornais era muito pequena e considerando as várias edições de matutinos e vespertinos que tinham de apregoar por dia, muitos garotos vendedores de jornal não voltavam para casa todos os dias. Muitos passaram a viver nas ruas do centro da cidade, dormindo próximo aos locais onde eram impressos os principais jornais da época.


O jornal A Noite, por exemplo, havia inaugurado em 1929 sua nova sede na Praça Mauá. No edifício de 22 andares, que tinha o mesmo nome do jornal e que foi o primeiro arranha-céu da cidade, foi instalado seu recém-adquirido parque gráfico. Mas o moderno edifício contrastava com a ocupação das ruas do seu entorno pelos garotos pobres vendedores de jornal.


Assim, em 1933, o jornal A Noite desencadeia uma campanha para arrecadação de fundos para construir um abrigo para estes menores: a "Casa do Garoto". O apoio oficial da doação de 10 contos de réis para o fundo feita pelo prefeito da época, Pedro Ernesto, funcionou, segundo o pesquisador Eduardo Sarmento, como uma "grande caixa de ressonância junto à população e a campanha começou a atingir todas as esferas da sociedade carioca".


Os setores mais populares identificaram-se com a história de vida do compositor popular e pintor Heitor dos Prazeres, contada em uma reportagem do jornal e na qual ele falava sobre sua infância miserável no Mangue do Estácio e que publicava a letra de sua canção oferecida à campanha: a Canção do Jornaleiro.



Trecho do vídeo "Observatório da Imprensa homenageia o Pequeno Jornaleiro" (Reprodução: Youtube)


Segundo o crítico de música popular Jose Ramos Tinhorão, em seu livro Os Sons que vem da rua, Heitor dos Prazeres conseguiu nesta canção o aproveitamento musicalmente mais bem-sucedido de um pregão de rua. Segundo Tinhorão, "Heitor dos Prazeres conseguiu transformar o pregão de 'Olha A Noite... ', dos próprios pequenos jornaleiros, num grito tão comovedor que se tornou capaz de abalar a indiferença da população da cidade".



Áudio "Canção do Jornaleiro, de Heitor dos Prazeres (1933)" (Reprodução: Youtube)



Graças em boa parte ao sucesso dessa canção, interpretada pelo menino Jonas Tinoco que comoveu a plateia do Teatro Recreio durante espetáculo destinado a recolher fundos, a campanha de A Noite foi tão bem acolhida pela população que foi possível, antes da inauguração de sua casa, o garoto ganhar até uma estátua em sua homenagem. 


Fritz e a Estátua do Garoto - De autoria do cartunista brasileiro Fritz, que se inspirou na triste figura do garoto que gritava as manchetes, em 1º de junho de 1933, foi inaugurada a estátua que visava "perpetuar no bronze a figura do pequeno jornaleiro, que é um colaborador eficiente e anônimo da Imprensa diária", conforme afirmava o jornal A Noite em sua edição de sábado, 03/06/1933.


Por escolha do prefeito Pedro Ernesto, a estátua foi localizada na movimentada convergência das ruas Miguel Couto e do Ouvidor, com a Avenida Rio Branco. Sua inauguração deu motivo à decretação de feriado escolar e à realização de paradas de estudantes, entre outras solenidades cívicas. Delas participaram também o prefeito, o Ministro da Fazenda, Osvaldo Aranha, representantes dos demais ministros de Estado e outras autoridades do então Governo Provisório de Getúlio Vargas.


O historiador da arte da caricatura, Luciano Magno, autor do livro "História da Caricatura Brasileira" e que esta preparando um livro sobre o cartunista Fritz, pseudônimo de Anisio Oscar Motta (1895-1969), afirma que "a escultura do Pequeno jornaleiro, um menino maltrapilho, com o chapéu de abas é uma obra magistral de Fritz, um dos maiores caricaturistas brasileiros".

Foto (esquerda): Caricatura de Fritz (1933) (Acervo Luciano Magno); foto (direita): Estátua do Pequeno Jornaleiro inaugurada em 1933.

Além da estátua, os donativos obtidos pela campanha já eram suficientes para a compra do terreno e para o contrato do projeto da “casa do garoto”. Mas com o recrudescimento da política e a cassação do prefeito Pedro Ernesto ela não foi construída. Em 1937, Getúlio Vargas dá o golpe do Estado Novo, instituindo um regime de inspiração fascista.


É neste contexto estado-novista que, somente em 1938, é inaugurada a Casa do Pequeno Jornaleiro, com a primeira Dama Darcy Vargas no comando, em substituição à iniciativa popular original de construir a “casa do garoto”. Em 1940 o governo de Vargas encampa o jornal A Noite e também a Rádio Nacional, que o grupo havia inaugurado em 1936 e que tinha alcançado grande sucesso.

A fundação da Casa do Pequeno Jornaleiro (1938).

Passando a usar uniformes e seguindo uma disciplina rígida, os garotos, agora elevados à categoria profissional de “Pequenos Jornaleiros”, passam a substituir os “garotos maltrapilhos” que até então ocupavam as ruas da cidade. Essa espécie de “higienização” da função, muito apreciada por governos autocráticos, contribuiu para a diminuição do número de crianças pobres que viviam nas ruas vendendo jornais, no estilo antigo. Também a imprensa foi seriamente perseguida nessa época o que levou ao fechamento de vários periódicos e/ou à redução de suas tiragens.


A estátua do garoto pelas ruas da cidade – Alheia aos reveses políticos e à diminuição no número de garotos de carne e osso presentes nas ruas, a estátua do garoto vendedor de jornais à moda antiga permaneceu em seu local original, a calçada da Av. Rio Branco, confluência das ruas do Ouvidor e Miguel Couto, até meados da década de 1990. Neste período a estátua sempre foi ponto de encontro e local privilegiado, por exemplo, para a propaganda política no centro da cidade e acompanhava a crise do jornalismo impresso que foi se acentuando nas décadas finais do século XX.



Pequeno Jornaleiro. Eleições de 1947.

Durante e a administração de Luiz Paulo Conde, prefeito da cidade do Rio de Janeiro de 1997 a 2000 e idealizador do projeto Rio-Cidade, as intervenções urbanas realizadas pela Prefeitura nas ruas do centro acabaram por retirar e transferir a estátua do garoto para a Rua Sete de Setembro, entre a Av. Rio Branco e a Rua Gonçalves Dias.


Pequeno Jornaleiro. Foto 1: década de 1930; foto 2: eleições de 1947; foto 3: década de 1950; foto 4: década de 1960; foto 5: década de 2000



Na opinião de Vera Dias, arquiteta e ex-Gerente de Monumentos e Chafarizes da Secretaria Municipal de Conservação e Serviços Públicos da Prefeitura do Rio de Janeiro, "essa segunda localização da estátua fez com ela desaparecesse". Para Vera, a localização original na Av. Rio Branco esquina com Rua Miguel Couto e do Ouvidor permitia um maior contato com a população que ali circulava.  "Lá, ela estava 'no meio do caminho' das pessoas", afirma. "O pequeno jornaleiro é uma belíssima obra de arte mas de pequena dimensão, que ficou esquecida num canteiro central da Rua Sete de Setembro entre letreiros de lojas, veículos e camelôs", acrescenta a arquiteta.


A retirada da estátua do garoto das ruas da cidade - Em 2016, as Olimpíadas são realizadas na cidade do Rio de Janeiro. Bem antes as ruas do centro já tinham virado um canteiro de obras visando à construção de um novo meio de transporte para a cidade: o Veículo Leve sobre Trilhos (VLT). A linha 1 (Aeroporto Santos Dumont-Rodoviária) é construída ao longo do eixo da Av. Rio Branco, causando muitos transtornos. Já a linha 2 (Central – Pç. XV) passaria pela Rua Sete de Setembro "atropelando" a estátua do garoto.


Pequeno Jornaleiro na Rua Sete de Setembro. Cercado pelas obras do VLT. Circa 2015. (Foto: Acervo Luciano Magno)

Preparando um livro sobre a história do caricaturista Fritz e de sua obra-prima, a estátua do garoto, o escritor Luciano Magno sempre teve admiração e preocupação com a escultura. Em janeiro de 2016, percebendo a iminência da retirada da estátua para a passagem do VLT, Magno recebeu total apoio da arquiteta Vera Dias, que era na época a Gerente de Monumentos e Chafarizes da Secretaria Municipal de Conservação e Serviços Públicos da Prefeitura do Rio de Janeiro, para que a remoção da via pública fosse feita da melhor forma possível. "Na época da remoção, fiz uma carta aberta a diversos órgãos e ao prefeito Eduardo Paes sobre a importância do cuidado na remoção e preservação dessa estátua", afirma o escritor.

Retirada e transporte da estátua do Pequeno Jornaleiro. Rua Sete de Setembro, Jan/2016. (Foto: Acervo Luciano Magno)

Segundo Magno, foi feito um cuidadoso trabalho durante a remoção da estátua que foi levada para o Parque Noronha Santos, na Av. Pres. Vargas. Neste parque havia sido construído em 2002, durante a gestão de Vera Dias frente à Gerencia de Monumentos e Chafarizes (1997 a 2017), uma sede própria para a guarda de peças danificadas, peças retiradas das ruas devido às interferências urbanas e um local para guarda de moldes de peças refeitas para reproduções.


Estátua do Pequeno Jornaleiro. Depósito da SECONSERMA, circa 2017. (Foto: Acervo Vera Dias)

Para este local foi levada a estátua do garoto, em janeiro de 2016. Mas, apesar de o parque ser aberto ao público, o depósito onde está guardada a estátua do garoto depende de autorização para ser visitado, sendo o último registro fotográfico datado de 2017 e realizado pela própria arquiteta Vera Dias.


Contatada, no final de maio de 2019, a Assessoria de Imprensa da Secretaria de Conservação e Meio Ambiente da Prefeitura do Rio de Janeiro (SECONSERMA) confirmou que a visita ao depósito não é permitida por questões de segurança já que lá está guardada grande quantidade de peças em bronze e outros materiais. Foram solicitadas então informações oficiais quanto ao estado de conservação da estátua do garoto e quanto à possibilidade de seu retorno às ruas da cidade, mas não obtivemos resposta.


Luciano Magno, que havia escrito a carta aberta quando da retirada da estátua em 2016, continua em sua luta de ver de volta a escultura em seu local original. “Participei ano passado (2018), como convidado, de uma reunião com o VLT nesse sentido. Foi por causa das obras do VLT que a escultura de Fritz foi retirada logo a Prefeitura do Rio considerou que o VLT deveria ajudar e fez esse pedido à empresa. Mas não sei se isso vai se confirmar assim, porque em primeira instância, é a Prefeitura do Rio, que tem a obrigação moral de cuidar de seus Parques e Monumentos e de realocar a obra.  Mas não o faz, pois alega falta de recursos”, afirma Magno.


Numa coisa parecem concordar Magno, Vera Dias e os técnicos da Prefeitura do Rio: o melhor lugar que para a recolocação - realocação – da estátua é o seu local original, na calçada da Av. Rio Branco, na confluência da Rua do Ouvidor com Miguel Couto. Como afirma Magno, “os próprios técnicos do VLT que participaram da reunião concordaram que ali há melhor visibilidade e acessibilidade à estátua pelo povo carioca e, por conseguinte, maior segurança. Isso evitaria sua realocação em um local ermo e menos concorrido, o que daria maior margem a ataques de vândalos”. 


Em tempos de aumento do número de atos de vandalismos na cidade, especialmente de roubo de monumentos públicos, o garoto de 86 anos e saúde de bronze aguarda em sua “casa de repouso” o retorno para seu lugar de origem em segurança. Nós também aguardamos, mas sem esquecê-lo.

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