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Liberdade religiosa ainda é desafio no RJ

  • bixcoitodiario
  • 12 de jun. de 2019
  • 6 min de leitura

Atualizado: 13 de jun. de 2019

Religiões de matriz africana continuam sendo os maiores alvos de intolerância




Por Milena Oliveira e Vanessa Costa


A liberdade religiosa e de culto são direitos assegurados pela Constituição, mas notícias de desrespeito a algumas religiões, principalmente às de matriz africana, ocorrem com frequência. “Embora o Brasil tenha mais de 500 anos, nós ainda não entendemos o que é liberdade religiosa. No vasto campo dos direitos humanos, o tema da liberdade religiosa é o menos conhecido. Tanto no aspecto jurídico, quanto sociológico e antropológico, nós ainda estamos engatinhando no assunto. Enquanto mantivermos a cultura da hegemonia, do padrão religioso, haverá estranhamento, o que é natural, mas esse ato de estranhar não pode gerar desrespeito, agressão, hostilidade”, afirma Márcio de Jagun, advogado, escritor, professor e coordenador de promoção da liberdade religiosa da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos do Rio de Janeiro.


De acordo com o Relatório do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (antigo Ministério dos Direitos Humanos) sobre Intolerância e Violência Religiosa no Brasil, produzido em 2018 (referente aos anos de 2011 a 2015), é difícil obter dados de denúncias destes crimes junto às ouvidorias e outros órgãos, seja pela vítima não denunciar, pelos órgãos não fornecerem informações ou por haver dificuldade em caracterizar as denúncias como violência ou intolerância religiosa. A maioria dos casos relatados às ouvidorias é contra agressores individuais. Conforme gráficos abaixo, 50% dos crimes são praticados por vizinhos e familiares, e a maioria das vítimas é de religião de matriz africana (27%).



Fonte: Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos


Fonte: Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos

No Estado do Rio de Janeiro, o Instituto de Segurança Pública (ISP) não dispõe de estatísticas relativas à prática desses crimes, pois ainda se fazem necessárias alterações, no sistema informatizado da Polícia Civil, para viabilizar os ajustes nos registros de ocorrência e a posterior coleta de dados. No entanto, segundo Gilbert Stivanello, delegado da Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (DECRADI), criada em agosto de 2018, 20 registros de ocorrência de intolerância religiosa foram realizados até 23 de maio de 2019, e a maioria expressiva dos casos é de injúria e contra integrantes de religiões de matriz africana, como umbanda e candomblé. Outros crimes registrados são os da chamada “Lei Caó” (Lei 7.716/83), que se referem a impedir o acesso, por exemplo, a instituições de ensino e estabelecimentos comerciais; os de vilipêndio (insulto) a artigos de culto, de interrupção e perturbação de culto e, ainda, de lesão corporal e dano. Assim como no restante do país, muitos crimes são praticados por vizinhos e familiares.


O delegado ressalta que 25% dos casos de intolerância religiosa ocorrem entre vertentes diferentes da mesma religião. Mas a invasão de terreiros e expulsão de seus frequentadores são ações tipicamente praticadas na baixada fluminense (principalmente em Duque de Caxias e Nova Iguaçu), por traficantes de drogas que se intitulam “traficantes de Jesus” e, nesses casos, as vítimas não costumam comunicar os fatos à delegacia por medo. Assim, as investigações acabam ficando restritas a depoimentos vagos de testemunhas que também têm receio de sofrer represálias.



Terreiro invadido em Duque de Caxias (Foto: reprodução Facebook Intolerância Religiosa)


Na Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos, as denúncias chegam por meio do Disque Combate ao Preconceito do órgão (tel. 21-2334-5500), do Disque 100 do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, e por variadas instituições. De Jagun, coordenador de promoção da liberdade religiosa daquela secretaria, afirma que lá as vítimas contam com orientação jurídica, assistência psicológica e social. Em certos casos, há mediação entre a vítima e o autor, mas a maioria dos agressores entende estar fazendo um bem à sociedade. A maior parte das denúncias recebidas diz respeito à violência contra religiões de matriz africana, o que coincide com a maioria dos registros policiais. A intolerância praticada pelo tráfico contra terreiros também é denunciada ao órgão.




Segundo de Jagun, um dos locais em que a liberdade religiosa sofre mais restrições é a escola, onde muitos atos praticados por alunos, professores e diretores ofendem a dignidade humana e liberdade de crença, embora, muitas vezes, não configurem crime. O Relatório do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos sobre Intolerância e Violência Religiosa no Brasil, de 2018, destaca que 90% dos processos judiciais são contra uma coletividade (empresas ou governo), e a maior parte (45%) é movida por fiéis da Igreja Adventista do Sétimo Dia, em virtude, principalmente, de conflito envolvendo a realização de atividades profissionais e educativas no chamado “dia sagrado de guarda” (do pôr do sol de sexta-feira ao pôr do sol de sábado).


“Na faculdade de Fisioterapia, tive que fazer provas aos sábados, mesmo contra minha religião, para não ser prejudicada, e, no trabalho, o fato de atuar na área da saúde facilita, pois Jesus trabalhou aos sábados, cuidando dos doentes! Logo, acredito não estar pecando, mas a Igreja, sim. E é complicada a aceitação da sociedade. Já vi muitos adventistas ficarem desempregados por causa disso”, afirma S.R., servidora pública, que prefere não se identificar, pois teme ser excluída da Igreja Adventista do Sétimo Dia.


O sacerdote do candomblé Filipi Muniz também foi vítima de intolerância no ano de 2016 em seu terreiro, à época, na comunidade do Faraó, em Cachoeiras de Macacu. Filipi, que não morava na cidade e ia para lá somente em finais de semana, conta que, logo no início, percebeu que as mães pediam para as crianças não chegarem perto do local e notava o olhar preconceituoso das pessoas que identificavam sua religião pelas vestimentas. O religioso diz que um ponto de pregação evangélico foi aberto exatamente duas casas próximas à entrada de seu sítio, logo na semana seguinte a uma festividade realizada no terreiro em que foram convocadas crianças para receberem doações de brinquedos. “Todas as vezes em que se faziam cânticos no nosso barracão, eles cantavam juntos e colocavam caixas de alto falante bem altas”, ressalta.


Além disso, Filipi teve seu terreiro invadido, revirado e quebrado por uma pessoa que dizia estar expulsando o demônio, a qual levou os artigos religiosos e materiais de valor de um dos quartos de santo. O sacerdote explica que optou por não fazer a denúncia, pois uma pessoa da região informou que não daria em nada. Relata que, em outra ocasião, um indivíduo da comunidade, mesmo sendo evangélico, conteve uma nova tentativa de invasão que estava prestes a acontecer no terreiro.


Terreiro depredado em Cachoeiras de Macacu (Foto: arquivo pessoal de Filipi Muniz)

Para de Jagun, as principais fontes de preconceito são a cultura hegemônica religiosa, a questão étnico-racial e o desconhecimento dos marcos religiosos. A historiadora Carolina Rocha, mestre em história pela UFF e doutoranda em Sociologia no Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), no qual pesquisa conflitos religiosos da atualidade, destaca que o ódio às religiões de matriz africana resulta de um processo histórico que existe desde a invasão e colonização do Brasil por Portugal e perdura até os dias de hoje. “As populações afro-indígenas e suas religiosidades sempre foram vistas enquanto obra do diabo, enquanto crime, enquanto heresia que precisava ser eliminada”, afirma a pesquisadora.


Atrelado ao fato histórico, Carolina explica que o racismo é o maior responsável pelas práticas de intolerância religiosa decorrentes de um projeto de poder de branquitude, de mundo branco, ocidental e cristão que só vai mudando de nome, mas é racista em sua origem. Ela declara: “por trás da intolerância à religião de matriz africana e da violência, está o racismo. Foram religiões construídas por pessoas negras no Brasil, vindo de uma diáspora forçada do tráfico transatlântico de escravos, que, na verdade, era negada, porque precisava cristianizar a população, justificar a escravização e domesticar esses corpos.” Por estes motivos, a historiadora acredita ser imprescindível, para diminuir a intolerância, combater o racismo e incorporar o terreiro na luta antirracial. “É necessário entender que os terreiros, independentemente da religiosidade que propagam, estão em luta contra a opressão. Se nos colocarmos, enquanto cidadãos, na luta de uma sociedade mais justa, igualitária e menos violenta, o terreiro tem que estar na defesa central das nossas lutas, não tem jeito, porque ele sempre vai ser um alvo”, complementa Carolina.


Apesar de o estado se dizer laico, Carolina ressalta que, na prática, diversas medidas como a existência de igrejas na polícia e liberação de grupos evangélicos para atuarem em penitenciárias, o que não ocorre com religiões de matriz africana, servem apenas para isentá-lo da responsabilidade pela violência religiosa. Segundo a historiadora, a manutenção da pretensão de uma verdade única, da ideia de que todos podem ser iguais se tiverem a mesma religião também favorece a intolerância religiosa.




Segundo o relatório do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos sobre Intolerância e Violência Religiosa no Brasil, de 2018, embora não haja informação da religião de 73% dos agressores, 17% dos autores são evangélicos. Para Carolina, a pedagogia e formas de agir da teologia neopentecostal estão estrategicamente focadas nas áreas de periferia, de vulnerabilidade, onde o estado, há muitas décadas, chega como repressão, e a religião age oferecendo ajuda em situações de dificuldade, disponibilizando clínicas de recuperação para dependentes químicos, por exemplo. De Jagun explica que a intolerância de certos integrantes das linhas protestantes mais recentes ocorre devido a “interpretações equivocadas dos textos sagrados, quando descontextualizam, quando demonizam divindades de outras crenças.” Segundo o especialista, ateus e agnósticos também são vítimas de intolerância porque são associados a pessoas ruins.





A Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos firmou termos de cooperação técnica com o Ministério Público e a Secretaria de Estado de Educação, para promover a liberdade religiosa nas escolas, com a criação de uma disciplina que deverá ser lecionada nos colégios do estado. O órgão também fechou parceria com o município de Nova Iguaçu, para a implementação de um núcleo de atendimento avançado no local, que terá estrutura semelhante à da sede, localizada no município do Rio de Janeiro. Além disso, a secretaria realiza seminários sobre o tema e encaminha os casos de crime à DECRADI.


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